quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

♫A MÚSICA DOS CHIFRES OCOS E PERFURADOS♫



Nas capoeiras de Mamanguape pasta uma notável população de veados. Vivem soltos e perseguidos pelos caçadores impenitentes.Muitos vão dar na praia enlouquecidos pela perseguição. Ficam bêbedos de cansaço e desespero. Nestas circunstâncias, não é difícil ser abatido pelos esquivos pescadores que gostam muito de carne. O peixe é prato de todos os dias. Vez por outra não faz mal variar de alimentação. E assim a espécie de galhudos vai rareando. Entretanto, a maioria dos caçadores não lhes comem a carne e até a abandonam nos matos. Tirado o couro, gostam de chegar com o troféu, exibindo-o, só pelo prazer de ostentá-lo — e mais nada. A caça verifica-se em dias certos. Não se faz assim de repente apenas pela alegria da aventura. Veado nem sempre pode ser pegado pelos cachorros e pelas balas de espingarda.

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O motivo da escolha cuidadosa da ocasião de persegui-lo vem de certo fato bem notório que toda gente entendida no negócio proclama como absolutamente verdadeiro. Existe nos tabuleiros alguns veados chefes de bando que costumam reunir o seu "poro'" para um remoer mais demorado na tranqüilidade. A convocação é feita por intermédio de harmoniosa música que toca a todos os corações. Ninguém poderá ouvi-la sem ficar inteiramente dominado e vencido nos seus propósitos inferiores.


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A beleza tem disso: amolece as energias empregadas no sentido do mal. E como caçar não deixa de ser impiedade, fica adiada a perseguição, fica para outro dia, pois o caçador foi posto à margem, é supersticioso e não ama contrariar as forças da natureza quando elas se manifestam tão maravilhosamente.

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A demonstração de intensa melodia (notas estranhas e deliciosas já bem conhecidas do homem que corre as matas de arma ao ombro e sacola de balas a tiracolo) vem como sinal de advertência generosa. Quem transgredir a norma histórica terá de arcar com as consequências nem sempre agradáveis. As surpresas então podem tornar-se constantes e prejudiciais. E não há necessidade de enfrentá-las assim de caso pensado. O melhor é aguardar outra vez. Fica para amanhã. Fica para depois. Em qualquer tempo é tempo para o "prazer da perseguição". Aquela música divina não é ouvida com freqüência, é mesmo coisa um tanto rara nas sextas-feiras, nos sábados e nos domingos. Nos outros dias da semana a caça não se faz de preferência por causa do trabalho de campo e outras obrigações de ganha-pão a que o homem se acha sujeito. Portanto, não convém ir de encontro às determinações dos deuses ocultos que dirigem os movimentos na floresta.

Rebanhos enormes se reúnem em torno dos galhudos. Estes ficam no meio como que dirigindo a sessão. Em torno se encontra a veadaria deitada em remansoso descanso. Os mateiros mais afoitos se arrastam cautelosamente até lá com o fim de apreciar o concerto incomparável. Impõe-se muito cuidado para evitar o menor barulho. Qualquer atrito de folha seca é razão para que os ouvidos fiquem logo atentos. Fiquem à escuta para uma arrancada louca na precipitação. Mas quando acontece tal curiosidade é porque prevaleceu o enfeitiçamento do caçador arrastado pelos encantos da música que tem qualquer coisa de sortilégio. Não tem preocupações de fazer mal. Chega mesmo a abandonar as armas para melhor facilitar a aproximação sutil nos seus movimentos de caçador.

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Os veados velhos mostram cada qual vinte e três chifres ocos e perfurados como flauta. O vento sopra com suavidade de nordeste. E faz arrancar dos chifres os sons mais sentidos de completa orquestra que toca para amenizar a vida perseguida e mesmo infeliz da raça tão esperta quanto ágil. De uma raça que entre os animais da região faz às vezes do judeu escorraçado pela inveja dos que não possuem predicados de inteligência e habilidade. A reunião prossegue pela noite a dentro. Não é difícil apurar o ouvido para sentir na madrugada fria dos tabuleiros as melodias mais belas que o vento arranca dos vinte e três chifres ocos e perfurados como flauta.


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Depois vem a dispersão. Cada qual para o seu canto. E que tratem todos de livrar-se da sanha criminosa dos seus perseguidores. O fim da semana é para se viver debaixo da maior cautela. Muito cuidado. Ainda assim é quando o caçador consegue livremente exercer a sua diversão que tanto tem de extravagante e sedutora como ainda de injusta. Sai para matar sem levar na alma menor sombra de preocupação com os imprevistos que lhe possam acontecer.



*(Vidal, Ademar. Lendas e superstições; contos populares brasileiros. Rio de Janeiro, Empresa Gráfica O Cruzeiro, 1950, p.227-228)

3 comentários:

Anônimo disse...

Vivendo e aprendendo.
Sempre surge coisas novas, esse que é o barato de vida.
Bjs.

Guará Matos disse...

Não sei se saiu meu nome no post anterior.
Bjs.

Denise Guerra disse...

Valeu Guará, estamos aí pro der e vier! Bjs!

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