(…) A MEMÓRIA É DEVERAS um pandemónio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode é alguém de fora se intrometer, como a empregada que remove a papelada para espanar o escritório. Ou como a filha que pretende dispor minha memória na ordem dela, cronológica, alfabética, ou por assunto (…)
Este é um passeio pelo enredo de “Leite derramado”, último livro de Chico Buarque. Quando terminei de o ler balbuciei para os meus botões: espectáculo! Assim reajo quando um livro me extravasa as expectativas. As latitudes que me prenderam: a forma como o autor conta o percurso de um país, (O Brasil) através das memórias de um velho aristocrata decadente, num monólogo absoluto, nele despontando a narrativa.
Num leito do hospital do Rio de Janeiro, um velho da linhagem D`Assumpção, genealogia de família tradicional, resiste em desperdiçar os seus últimos dias como um anónimo e decide contar as suas lembranças a quem o quisesse ouvir - os médicos, a enfermeira a quem chega inclusive a prometer casamento e à filha que o manda internar, entre outros.
O velho Eulálio, narrador e protagonista, por sua vez, escolhe um alter-ego, a esposa Matilde, de quem guarda as mais belas e tristes recordações. Igualmente, retive como brilhante o retrato de todo o fausto e requinte vivido entre Brasil e Europa, passando pela política, pelas relações entre classe e raça, em que o amor de Eulálio e Matilde fenece com a sensação de desolação eterna e absoluta. Diz o texto que Matilde foge, se apaixona por outro, morre num manicómio… enfim, meandros da imaginação de um velho derrotado pela vida.
“Leite derramado” não é (auto) biográfico. É narrativa existencialista. Com tudo o que de realista e de fantástico se nos empresta a existência. As lembranças do velho Eulálio são desconexas, anacrónicas sem o mínimo esforço cronológico, mas a sua força psicológica é existencial.
Chico Buarque reafirma, neste romance, que, para além de conhecedor profundo do processo histórico brasileiro, é um “caçador de heranças” culturais, sociais e familiares. Ironizando sobre o manancial das heranças com que promove o seu processo criativo, ele próprio diria que “tenho uma mãe centenária”, o que, na minha opinião, mexe com qualquer pandemónio da memória.
Texto publicado no blog http://odiaquepassa.blogspot.com/em julho de 2009.
Leite Derramado acaba de ganhar o Prémio PT Literatura 2010 e neste mês já havia levado também o prêmio Jabuti de melhor livro do ano de 2010.
Parabéns ao bom e "velho" Chico.
ResponderExcluirBjs.
Só temos que aplaudir esse mestre da cultura brasileira, juntos com muitos outros que o povo esquecem de ler, ouvir e acompanhar seus passos.
ResponderExcluirMerece e com todo o júbilo que os venham dar.
Abraço
Olá Denise
ResponderExcluirAinda não li o livro, mas pretendo. Amo o Chico.
Tenha um ótimo feriadão.
Beijos
Denise,
ResponderExcluirBem haja por nos lembrar esse romance, bem como esses prémios.
...
Contudo eu sou crítico quanto a prémios, óscars, noble, etc, etc.
Sei que se deve dar valor a quem
trabalha, mas eles não saberiam assim "trabalhar" se não fossem as "histórias de vida" de tantíssimos anónimos.
Só que têm o dom de passar para o papel, para a tela, a vida de cada qual.
Denise
ResponderExcluirObrigada amiga
o livro está a chegar...
O blog tento que seja leve e discreto...
beijos
Se quizer o livro eu envio---
Chico é competente em tudo que faz!
ResponderExcluirBjos ;)
Já li o livro e recomendo!
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